Carta aberta ao Governo do Estado do Paraná
Data da publicação: 10 de agosto de 2021 Categoria: Notícias* Carta reproduzida na íntegra
Remetente: Docentes dos Departamentos de Sociologia, Antropologia e Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Mestrado Profissional em Sociologia da UFPR
Assunto: Sobre a modificação da estrutura curricular e a redução da carga horária das disciplinas de Sociologia, Filosofia e Artes no âmbito das escolas públicas do Estado do Paraná
Ao término do ano letivo de 2020, o Governo do Estado do Paraná promoveu mais uma mudança abrupta, arbitrária e unilateral ao reduzir a carga horária total das disciplinas de Sociologia, Filosofia e Artes no Ensino Médio. A Instrução Normativa Conjunta n. 11/2020, publicada pela Secretaria de Educação e Esportes do Paraná (SEED) em 16/12/2020, modifica a matriz curricular na rede, padronizando a carga horária em todos os estabelecimentos de ensino, com 4 horas/aula de Língua Portuguesa, 3 horas/aula de Matemática, 1 hora/aula de uma nova disciplina intitulada Educação Financeira, e 1 hora/aula de Sociologia, de Filosofia e de Artes.
A ausência de explicações ou consultas qualificadas caracterizam um papel autocrático da SEED e não pode ser naturalizado. Tal como na imposição de uma sondagem sem debates realizada às pressas pelo governo sobre a militarização das escolas do Estado, não houve agora qualquer transparência ou participação efetiva da sociedade sobre essas mudanças. Tanto num caso como no outro, não houve estudos pormenorizados sobre os impactos que essas mudanças podem acarretar no processo formativo dos estudantes, muito menos considerou-se o cerceamento aos professores na elaboração da reflexão crítica. O argumento tornado público pelo Secretário é da unificação curricular, mas obscurece os efeitos nocivos da referida normativa a curto, médio e longo prazos. Quais outros fatores, além da suposta unificação curricular, fundamentam a redução da carga horária das disciplinas de Sociologia, Filosofia e Artes?
Muitos pontos são ignorados ou suplantados pelo Secretário. Primeiro: “Educação Financeira” não é uma disciplina, mas constitui um conteúdo transversal da Base Nacional Curricular Comum. Há perdas imediatas nessa medida ao transformar um tema específico sem conteúdo disciplinar numa disciplina, perde-se o sentido integrador a ser construído através dos projetos pedagógicos das escolas, que são essencialmente interdisciplinares. Segundo: um efeito não planejado na gestão pública será uma maior fragmentação das disciplinas, reduzindo tempos de integração, socialização e sensibilização. Isso resulta na distorção do processo formativo dos estudantes para a construção democrática de sua autonomia e liberdade crítica. Terceiro: a construção de hierarquias entre áreas de conhecimento é uma prática historicamente fracassada na educação global, abandonamos o latim, as línguas originais, os conhecimentos populares, o artesanato em nome de um progresso tecnológico excludente e desigual. Quarto: a Língua Portuguesa e a Matemática tornam-se ainda mais relevantes quando seus conteúdos são elaborados complementarmente noutra chave interpretativa propiciada pelos conceitos da Filosofia, pela abordagem da Sociologia e pela experiência das Artes.
Não há uma incompatibilidade entre as disciplinas das humanidades e as demais, assim como não há incompatibilidade entre a democracia e as diferenças a ela subjacentes. O mundo de hoje cada vez mais exige dos sujeitos a diversidade, o poder de interpretar, analisar, identificar e de se expressar. A SEED, com esta Instrução Normativa, segue na contramão dos avanços mais atuais no campo da educação inter ou transdisciplinar, ao relegar aos estudantes um papel coadjuvante na construção do conhecimento e das relações sociais. Aliás, talvez seja por isso mesmo que as escolas privadas mantenham em seus programas as disciplinas de Sociologia, Filosofia e Artes (algumas até no ensino fundamental). Esse tipo de formação humanística não é compreendido como um adendo ao conteúdo tradicional, mas como componente curricular essencial na formação plena dos estudantes-cidadãos.
Por experiência dos professores da rede pública e comprovado por pesquisas realizadas no âmbito da UFPR, sabe-se que estas disciplinas são de fundamental importância na interpretação de textos, na elaboração de redações e na formulação de opiniões dos alunos sobre sua própria realidade. Ainda que a SEED não reconheça – até porque parece desconhecer a realidade pedagógica das escolas – há uma integração orgânica dos conteúdos de Sociologia e Língua e Literatura Portuguesa, bem como de Filosofia e Matemática. Logo, a redução de carga horária afetará negativamente na assimilação das demais disciplinas, sobre a capacidade de o estudante refletir sobre si e sobre o mundo que habita, composto de instituições, valores e simbolismos. Nesse sentido, o efeito da Instrução Normativa pode ser o inverso do esperado pelo governo nas métricas educacionais.
Ainda cumpre salientar que, da perspectiva dos recursos humanos, o resultado dessa ação é notadamente perverso com os professores do Quadro Próprio do Magistério (QPM), que ministram essas disciplinas na rede. Haverá o dobro de turmas para fechar a carga horária de 20 ou 40 horas de trabalho, o que exigirá, comumente, trabalhar em várias escolas e/ou com outras disciplinas, desde que devidamente habilitados. Um professor 40 horas terá que atuar 30 horas em sala de aula, tendo, portanto, que atender 30 turmas diversas. O dobro que atende hoje. Obviamente, isso resultará na não contratação de um número significativo de docentes temporários, pelo Processo Seletivo Simplificado (PSS), o que também é desolador. Sobrecarga, de um lado, demissão, de outro. A princípio, pode parecer lucrativa essa mudança para os cofres governamentais, mas o custo (financeiro e político) logo aumentará com, entre outros, o afastamento de professores esgotados e a queda na qualidade educacional a médio e longo prazo.
Por fim, a Sociologia, assim como a Filosofia, são disciplinas que integram os processos vestibulares da Universidade Federal do Paraná dentre outras seleções para cargos de carreira, como é o caso do recrutamento de cadetes da polícia e bombeiros militares. Ou seja, a modificação da matriz curricular realizada de forma improvisada implicará em inúmeros impactos negativos dentro e fora da escola. É necessário que propostas de mudança sejam apresentadas e debatidas com a comunidade escolar, com pesquisadores da área da educação e, sobretudo, com os profissionais que desempenham as funções de ensino nas unidades escolares. Que qualquer reforma dessa natureza seja construída coletiva e democraticamente; que atenda às demandas da sociedade e que o Estado, aqui representado pela SEED, ofereça possibilidades para o fortalecimento dos valores de cidadania, solidariedade e bem público. E ter como horizonte a democracia que, segundo Anísio Teixeira, é antes de tudo um regime de saber e de virtude.
Curitiba, 07 de janeiro de 2021.